#32 Comunicação Não-Violenta: um guia para conversas difíceis
“Embora possamos não considerar ‘violenta’ a maneira que falamos, nossas palavras não raro induzem à mágoa e à dor”, dizia o psicólogo norte-americano Marshall Rosenberg. Com o objetivo de propor uma nova forma de se relacionar, ele criou o conceito da comunicação não-violenta, que apresenta ferramentas para superar os desafios que são causados pela forma que nos comunicamos.
Segundo a psicóloga Iane Ventura, a comunicação não-violenta é sobre a qualidade nas nossas conexões. “Quando você interage com alguém com pouca empatia só vai conseguir acessar o superficial desse ser humano. Quando essa interação é violenta, nem o superficial é possível acessar, porque a violência só causa distância”, afirma.
Ela explica que uma divergência só pode ser realmente resolvida quando acessamos profundamente o outro e esse acesso tem apenas um caminho: a comunicação gentil, sincera e não-violenta. “Quando uma conversa está sendo guiada pela gentileza e compreensão na fala, o outro escuta com mais atenção e fica mais fácil resolver conflitos. Quando a comunicação é honesta e respeitosa, tudo fica mais objetivo e produtivo porque não se perde tempo com insultos”, acrescenta.
De acordo com a especialista, é importante entender que tudo o que você sente é sobre você, então, na hora de levar alguma demanda para o outro, em vez de acusar, você pode expressar como você se sentiu com a situação. Ou seja, em vez de falar: “poxa, você tá sempre atrasado”, tente: “eu me sinto muita frustrada todas as vezes que você atrasa, porque eu me organizo para estar aqui no horário e sinto que meu tempo é desrespeitado”.
“Outra sugestão é primeiro escrever o que você gostaria de dizer do jeito que está vindo na mente, isso vai aliviar e ajudar a elaborar. Depois, pergunte-se: qual o melhor jeito de falar isso?”, ensina. E alerta: “toda situação desafiadora é uma oportunidade de desenvolver nossas habilidades e, assim, fortalecer nossos vínculos. Quando problemas são tratados, eles nos deixam mais fortes e atentos. Quando não, eles nos adoecem internamente, alimentando padrões disfuncionais e isso é muito perigoso para nossa vida como um todo”.
Dificuldade de dizer ‘não’
Muito provavelmente você já esteve em uma situação em que gostaria de ter dito ‘não’, mas evitou dar uma resposta negativa e acabou fazendo algo que não queria. Flavia Amorim, sócia do Instituto CNV Brasil, escola de comunicação não-violenta, explica que essa dificuldade que muitos temos de dizer ‘não’ vem do fato de que somos seres sociais, e uma das formas mais seguras de sobreviver no contexto em que estamos é pertencer a um grupo. “Fugir de conflitos, evitar dizer ‘não’ ou priorizar a harmonia em relações são apenas estratégias para sustentar esse pertencimento”, esclarece.
No entanto, o ‘não’ não dito tem sempre um preço. Para a especialista, o principal prejuízo está naquilo que deixamos de cuidar quando dizemos ‘sim’ querendo dizer ‘não’. “Por exemplo, o que você não cuida quando aceita mais uma demanda de trabalho? Talvez sua organização, a qualidade da sua entrega e sua saúde mental sejam comprometidas quando você faz essa escolha”, exemplifica.
Devemos então olhar para o ‘sim’ que há por trás de um ‘não’. A CNV nos apoia a encontrar as necessidades que preservamos quando dizemos ‘não’ (qualidade, saúde, ordem etc), isso traz mais entendimento para o que precisamos e nos leva para uma conversa recheada de informações que apoiam a construção de alternativas.
Portanto, a recomendação é: antes de dizer aquele ‘sim’ automático, pare por alguns segundos e reflita sobre o que legitima o seu ‘não’. “O que você cuida se disser ‘não’? Saber isso lhe trará mais facilidade de negar um pedido de maneira cuidadosa e autêntica”, afirma.
Vale também pensar nos impactos que o ‘sim’ lhe trará posteriormente. “A ideia de evitar o conflito é muito sedutora, pois resolve um problema no momento, deixamos de entrar em uma briga ou de gerar algum tipo de incômodo e isso parece ótimo. Mas os impactos futuros dessa ação podem ser devastadores”, ressalta Flávia.
Quem prefere optar pelo ‘sim’ sempre, já deve ter percebido que, em algum momento, o ressentimento por ir além de seus limites aparece. “A sobrecarga de atividades e preocupações também pode atingir uma proporção que ameaça a saúde mental e emocional e a negligência de suas próprias necessidades pode chegar a um ponto que leva a raiva, apatia e desgosto da vida. No final das contas, colhemos impactos em nossa saúde e acabamos por ter relações extremamente machucadas, não vale a pena no longo prazo”, conclui.
Vamos conversar
Ouvir, falar, ser ouvido e repetir o ciclo. Um diálogo é feito de etapas aparentemente simples, mas nossas percepções e emoções podem torná-lo muito mais complexo. Em Vamos Conversar, lançado pela editora Record, a psicanalista Elisama Santos explica como tornar esses processos mais respeitosos e evitar ruídos de comunicação. Saiba mais na entrevista a seguir:
Como a comunicação não-violenta pode contribuir com nossos relacionamentos e nos ajudar a resolver os conflitos de maneira mais saudável e produtiva?
A comunicação não-violenta não é um mero método para lidar com os conflitos. É um jeito de ver a vida, um convite para que mergulhemos em nossas conversas com desejo genuíno de cuidarmos do que importa pra nós e para o outro na relação. Quantas vezes iniciamos uma conversa sem refletirmos com cuidado no que estamos tentando proteger ali? Quantas vezes falamos sem sabermos de fato o que é importante? E quantas vezes escutamos sem realmente escutar? Ouvimos o outro falar sem nos interessarmos no que sente e precisa, mas pensando em nossa autodefesa ou contra-argumento. É escutando a nós mesmos e ao outro que podemos estabelecer o que negociável e o que é inegociável, que saímos do ciclo de busca de culpados e mocinhos que nos habituamos em nossos diálogos.
De que forma ela pode ser aplicada em nosso dia a dia?
Tratando-se de uma lente, podemos utilizar esses óculos em diversos momentos no dia, sempre que a nossa visão, sozinha, não dê conta de enxergar as situações com clareza. Se estamos com um conflito com um colega de trabalho e precisamos encontrar uma solução saudável para ambos, precisamos sair das acusações de “seu relatório está incompleto e não dá pra trabalhar assim” para “as datas de compra e de todos os contatos com o cliente me ajudam a ter um panorama mais completo da nossa relação com ele, esses dados são importantes para que eu possa planejar as minhas ações. Você pode incluí-los daqui pra frente?”. Parece algo bobo, mas já reparou quantas vezes a gente acha que o é que importante pra nós está óbvio nas relações, mas na realidade não está? Quem disse que a sua esposa sabe que a terça é um dia mais tenso pra você se você não contar? Quem disse que os motivos do seu incômodo com a fala da sua irmã estão nítidos? Para além de como falamos, a nossa escuta se amplia quando estamos utilizando essas lentes: como essa pessoa vê a situação? Como se sente diante do que percebe? O que é importante pra ela aqui? As nossas posturas mudam quando olhamos para as situações com o cuidado que pedem.
Quais os principais erros que cometemos durante uma conversa?
Perdemos a curiosidade. Partimos para as conversas cheios de certezas cristalizadas. Julgamos que sabemos exatamente quem o outro é e o que quer, quem somos e o porquê de agirmos como agimos e quase não nos permitimos duvidar, questionar. A curiosidade nos permite ir além das verdades prontas e é nas camadas menos superficiais da conversa que estão as respostas mais importantes. “Por que eu fiquei tão mobilizada com a fala dele?”, “O que era tão importante nessa conversa que me fez agir assim?”, “O que ela está cuidando quando me diz o que disse?”. Encontrar essas respostas nos ajuda a tomar decisões conscientes e assertivas, que nos aproximam do tão esperado bem-estar.
No livro você fala sobre limites, escuta ativa... Quais os elementos essenciais para se comunicar de forma eficaz?
Além da curiosidade, que considero a nossa maior aliada nas conversas, precisamos de disposição. Conversas, sobretudo as mais difíceis, geram incômodos. Nos dão medo, nó na garganta, aperto no peito. Nos fazem perceber coisas que não víamos e que, muitas vezes, nem queríamos ver. Precisamos nos dispor a viver os incômodos das conversas focando na construção de uma vida melhor. Sempre comparo as conversas difíceis com reformas. A gente precisa lidar com a poeira e o barulho para ampliar os espaços e a vida. Escutar a nós e ao outro não é fácil. Não escutar também não. Que difícil vamos escolher?